Introdução
O momento de instabilidade social, econômica e política decorrente da pandemia[1] do Coronavírus (Covid-19) – declarada pela OMS no dia 11 de março de 2020 – está causando reflexos sem precedentes nas relações jurídicas, impactando diretamente nos negócios imobiliários e no desenvolvimento nacional, um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil[1].
Evidente que no momento a atenção deve estar voltada para a saúde, direito de todos e dever do Estado[2], envidando-se todos os esforços necessários da administração pública e do povo brasileiro para prevenir e conter a disseminação do Coronavírus no país.
Nesse passo, diante da declaração da Organização Mundial da Saúde (OMS) de situação de Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII)[3] – o maior nível de alerta da OMS, diga-se de passagem –, foi instituído no Brasil em 03 de fevereiro de 2020 o Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos da Covid-19[4], órgão de articulação da ação governamental e de assessoramento ao Presidente da República sobre a consciência situacional em questões decorrentes dessa pandemia.
Como se observa no atual cenário nacional, diversas medidas estão sendo adotadas pelo Poder Público visando conter a disseminação da Covid-19 e a proteção da saúde e da coletividade, a começar pelo distanciamento social, isolamento domiciliar e quarentena impostos pela Lei n. 13.979, de 06 de fevereiro de 2020[5].
Também foram editadas a Medida Provisória n. 926[6] – estabelecendo procedimentos para aquisição de bens, serviços e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública – e a Medida Provisória n. 927[7] – estabelecendo as novas medidas trabalhistas que podem ser adotadas pelos empregadores para preservação do emprego e da renda e para enfrentamento do estado de calamidade pública.
Essas medidas “não afastam a competência concorrente nem a tomada de providências normativas e administrativas pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios”, conforme decidido liminarmente nos autos da ADI 6341[8] pelo ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF),
A propósito da competência concorrente, o Estado do Espírito Santo também adotou diversas medidas para enfrentamento da Covid-19 por meio dos Decretos n. 4.593, 4.600-R e 4.605-R, dentre elas a suspensão do funcionamento de estabelecimentos comerciais, centros comerciais (shopping centers), academias de esporte de todas as modalidades, atendimento ao público em todas as agências bancárias e em concessionárias prestadoras de serviço público.
Posta assim a questão, é de se dizer que em razão da instabilidade social, econômica, política e jurídica decorrente da situação de Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) e das medidas adotadas pelo Poder Público, inúmeras controvérsias surgem em relação aos negócios imobiliários, dentre as quais podemos enumerar: (1) nos contratos imobiliários: (a) nulidades, (b) juros, (c) correção monetária, (d) inexecução contratual e suas consequências, (e) revisão e (f) resolução contratual; (2) nas locação não residenciais: (a) valor do aluguel, (b) inadimplemento, (c) multa pelo pagamento em atraso, (d) devolução antecipada do imóvel pelo locatário, (e) locação em shopping centers e (f) contrato built-to-suit (construído para servir); (3) na compra e venda de imóveis: (a) prazos para pagamento, (b) inadimplemento, (c) prazo para purgação da mora, (d) multa pelo pagamento em atraso, (e) atraso na entrega do imóvel e (f) desistência da compra; (4) nos condomínios: (a) direito de propriedade, (b) limitação ao uso de áreas comuns, (c) limitação de circulação de pessoas, (d) cancelamento de assembleias ordinárias e extraordinárias e (e) suspensão de autorização para obra.
Em verdade, na atual conjuntura o maior impacto nos negócios imobiliários será o inadimplemento das obrigações pecuniárias, considerando-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma pactuados (art. 394, CC[9]).
À vista do até aqui exposto, como devem ser analisados os negócios imobiliários vigentes frente às controvérsias resultantes desse novo cenário mundial?
O desate dos negócios imobiliários não podem ser desvinculados da atual realidade mundial, a despeito da pandemia da Covid-19 e das medidas adotadas pelo Poder Público, de sorte que os ajustes devem ser direcionados para a consecução de finalidades que atendam aos interesses da coletividade e aos princípio da boa-fé objetiva e da função social do contrato.
É nessa linha que passo a analisar os negócios imobiliários em geral.
Do Negócio Jurídico: Contato Imobiliário
O contrato é um negócio jurídico bilateral ou plurilateral que visa à criação, modificação ou extinção de direitos e deveres com conteúdo patrimonial. É, portanto, um ato jurídico em sentido amplo – em que há o elemento norteador da vontade humana que pretende um objetivo de cunho patrimonial – e constitui um negócio jurídico por excelência[10].
Em um conceito pós-moderno, o Professor Paulo Nalin[11] define o contrato como “a relação jurídica subjetiva, nucleada na solidariedade constitucional, destinada à produção de efeitos jurídicos existenciais e patrimoniais, não só entre os titulares subjetivos da relação, como também perante terceiros”.
Analisando a feição interna do contrato, Maria Helena Diniz[12] assinala dois elementos essenciais para a formação do instituto: um estrutural, constituído pela alteridade presente no conceito de negócio jurídico; e outro funcional, formado pela composição de interesses contrapostos, mas harmonizáveis.
Analisando detidamente o elemento funcional do contrato, o Professor Silvio Rodrigues[13] sintetiza com peculiar mestria que o princípio da autonomia da vontade parte do pressuposto de que as partes contratantes se encontram em condições de igualdade, sendo ao nosso ver livres para aceitar ou rejeitar os termos do contrato, ainda que contrapostos.
A par disso, dentre os princípios que regulam a vontade das partes está o princípio da obrigatoriedade das convenções, conhecido juridicamente como pacta sunt servanda, que advém do latim “acordos devem ser mantidos”.
É certo que os contratos, atrelados à legalidade do que foi convencionado entre as partes, são pactuados com o intuito de serem cumpridos, de sorte que se torna obrigatório, via de regra, em decorrência da proposta e aceitação integral.
Não obstante isso, a doutrina calcada nos lapidares conceitos expendidos por Flávio Tartuce[14] assevera que o princípio da força obrigatória ou da obrigatoriedade das convenções constitui exceção à regra geral da socialidade, estando mitigado ou relativizado, sobretudo pelos princípios sociais da boa-fé objetiva e da função social do contrato, princípio que impera dentro da nova realidade do direito privado contemporâneo.
Cumpre-nos analisar, assim, os princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato.